sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

A Manquinha - conto

 


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A Manquinha

 

Pulava numa perna só – bicando um grão aqui, um grão ali, enchendo o papo.

Arrulhava, cabeça no ar, o peito cheio – com um orgulho triste.

Os moleques espantavam as outras pombas – “Suas cagonas!” Ela, não; era respeitada – ou a gente tinha dó.

Que pena a Manquinha, com o seu coto de perna! Fosse gente, teria uma muleta. Uma filhinha, que lhe traria um prato de comida. Ou nem teria essa filhinha – e ficaria, pobrezinha, num canto pedindo esmola.

Já imaginaram uma pomba de muletinha? Não acham que tinha até um ar alegre, a Manquinha? Será que pomba chora? Uma lagrimazinha escorrendo, já pensaram? Pé aqui, pé acolá, enchendo – upa! quase cai – o papo. Gorduchinha.

Não ia bem com arroz? Um croque na cabeça, moleque da peste!

Onde a Manquinha? Sumia tempos, como as outras. Depois voltava – mais velha?

Pombas, todas iguais. Ela, pernetinha, era ela só. Me afeiçoei à bichinha. Se uma tarde ela não estava lá – na frente do açougue, pinicando os grãos de milho, ou a quirerinha, o farelinho – ah, eu já ficava arreliado: “O que será que aconteceu?”

Não pode ser: ela está olhando para mim? – Eu imaginava. Aquela brancura manquitola quebrava a monotonia da vida. Eu me culpava: “Então, feliz com a desgraça dos outros? Está certo isso?” Mas se ela nem era um outro! Era só uma pombinha! E eu sentia remorso – me mordia de raiva de mim.

O caso é que a danadinha me alegrava. Até que um dia – são assim todas as histórias – voou para muito longe, não voltou nunca mais. Onde estará? Em que frincha negra da vida…? Será que foi comida? Ah, se eu pego o filho de uma…

Eu procurava, sempre, sem fim. Ainda hoje – quantos anos rolaram nas águas sujas sob a ponte! Ainda hoje fico procurando. Dou por mim, estou numa perna só – pernetinha.

 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

O ouriço - conto

                                     

 

                            O Ouriço

 

                                        

 

                                                       https://cronicascariocas.com/o-ourico/ 

 

 

        Estou grudado no alto da porteira da mangueira das vacas. Lá embaixo o Duque late feito doido. Avança, negaceia, avança de novo – uma bruta valentia. É um ouriço acuado junto ao mourão da porteira. Ele rodopia, se eriça todo – coisinha indefesa, só tentando fugir do ataque. Mas de cada ataque o Duque é que foge, ganindo – um choro longo e fino de doer na gente.

        Estou tremendo inteirinho aqui escanchado na tábua de cima da porteira.

        O Duque não pode morder o ouriço; mas não desiste. Que dó que isso dá! Bicho besta, por que não vai embora? Aí, teimando e se machucando. Também, que mal que fez o coitado do ouriço, esse bichinho inocente. O quê? Inocente? Um monstro que caiu em cima do Duque, todo escalavrado.

        Um tiro de repente. E a voz do meu pai:

        – Menino, desce daí!

        E eu desço, fazer o quê?

        – Por aí não, pelo outro lado.

        – Por quê?

        – Desce logo.

        Eu sei que não tem espinhos no chão. Ele deve estar cismado; eu obedeço.

        – Vai lá dentro buscar um alicate. Corre.

        – Alicate?

        – Tem que ficar perguntando as coisas? Vai, vai duma vez.

        Eu obedeço. O Duque está lá encolhido num canto da cerca. Geme, geme baixinho.

        Meu pai sabe fazer as coisas direito, por que então não trata do Duque, fica pedindo alicate?

        – O que você quer?

        – O alicate, mãe.

        – Por que você quer alicate?

        – O pai que quer, mãe.

        – Põe no lugar depois, hein?

        – Sei.

        – E não revira esse baú.

        Pego o alicate, levo correndo. Na porta da cozinha escorrego, me esparramo no chão.

    – Cuidado! Sempre estabanado. Não precisa correr tanto.

        Levanto, saio mancando. Tinha que ir apressado. É que me lembrei do Duque.

        Meu pai está agachado. Está fazendo um carinho, consolando, passando a mão na barriga do Duque; com a outra mão segura firme no pescoço, agarrando a pele.

        Não fala nada.. Pega o alicate, segura mais forte, põe o joelho prendendo bem o Duque. Pacientemente, devagar, com mão sábia, depois num arrancão tira espinho por espinho.

        O Duque deixa, nem se mexe. Só chora, um chorinho desconsolado, lá do fundo. O focinho pingando sangue.

        Depois, some um tempo. Não muito; na hora da janta esta lá num canto da cozinha.

        Minha mãe põe a sopa de mandioca na mesa. Oba. Comemos com uma senhora satisfação. Mas logo meu pai se irrita, está olhando o Duque:

        – Bicho imprestável!

        – Ele não tem culpa, pai.

        – Por que é que não tem?

        Lá no seu cantinho, aqueles olhos de dor. A gente percebe, uma aflição bem de dentro.

        – E o ouriço, pai?

        – Que é que tem?

        – Que é que o senhor fez com ele?

        – Ara! Nada.

        Terminamos de comer sem vontade, a sopona fumegando numa gostosura.

        Não paro de olhar para o Duque:

        – Como que o ouriço faz isso?

        – Ara! Faz.

        – O espinho vai que nem flecha?

        – É.

        – E fura a carne?

        – Vai furando. Se não tira vai indo para dentro.

        – E agora?

        – Agora vamos fazer o quilo. Logo é hora de dormir.

        – E o Duque, pai?

        – Ele sara.

        – Ele não comeu nada.

        – Quando a fome apertar, ele come. Sossegue, isso passa.

        Meu pai acaba de enrolar um cigarro, vamos para a varanda. Ainda olho o Duque; ele abre os olhos, se bate de leve – uma tremura.


segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Elegia a Regina Ramos (vídeo)


 

                                            Poema Elegia, em homenagem a Regina Ramos 

 

 

 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Leonardo Fróes (1941-2025)


 

LEONARDO FRÓES

 

 

Subiu a alta montanha para encontrar o dia grandioso,

para os pulmões respirarem o ar puro.

Descer é que são elas, teria pensado,

mas de repente está do outro lado, abaixo ou acima.

Quem somos nesta nossa caminhada?

O que nos espera no fim da jornada?

Leonardo Fróes está na primeira manhã do mundo,

quando a luz iluminou a terra vazia.

Um frio lhe desce pelos membros,

o calor lhe aquece a alta cabeça.

Cabelos ao vento, fareja os dinossauros do princípio do mundo.

Contempla a criação com satisfação, quase com orgulho.

Há muitos erros no caminho do homem, imensos.

O homem cavou a sua própria sepultura,

mas Leonardo Fróes não chora mais o leite derramado. 

 

José C. M. Brandão 

 

 

 

 

 

 

sábado, 27 de setembro de 2025

O tear

 


 

O tear 

 

 

Estou no meio da ponte, olhando o rio.

As águas negras regurgitam lá embaixo

como um pulmão.

As árvores, as estrelas e os peixes pulsam.

 

A mulher tem um pinheiro na língua e canta.

O menino relincha como um cavalo.

Eu sou esse menino.

Uma sereia se admira no espelho d’água.

 

Contemplo o espetáculo do mundo.

Os cães disputam o osso da tarde.

A sombra é pouca para tanta luz.

É minha a paisagem.

 

O tear tece a trama de Deus.

Vai nascer o pássaro do êxtase.

Eu sigo arando a terra com a palavra.